Carboidratos de reserva e o aumento do teor proteico na levedura

Por Silene Cristina de Lima Paulillo

Portal FT julho/2018

O glicogênio e a trealose são considerados carboidratos de reserva para as leveduras e têm um papel muito importante na manutenção da viabilidade, no desenvolvimento de novas células e na proteção celular.

O glicogênio é a reserva de energia da levedura em condições de limitação de açúcar. Trata-se de um polissacarídeo constituído por glicoses em ligações α-1,4 e α-1,6 (figura 1). É uma cadeia altamente ramificada, contendo de oito a 12 moléculas de glicose a cada ramificação. Já a trealose é a responsável por manter a integridade das membranas e das proteínas da levedura, conferindo tolerância às condições adversas de temperatura, pH e teor alcoólico. A trealose é um dissacarídeo formado por duas moléculas de glicoses em ligação α-1,1, formando um açúcar não redutor, como a sacarose (Figura 2).

Figura 1. Molécula de glicogênio: polissacarídeo formado por glicoses em ligações α-1,4 e α-1,6, em cada ramificação há de oito a 12 moléculas de glicose.

Figura 2. Molécula de trealose: duas moléculas de glicose em ligação α -1, 1.

Funções do glicogênio e da trealose

O glicogênio e a trealose podem ser acumulados pelas células de leveduras em quantidades inferiores a 1% e superiores a 23% do peso da matéria seca, dependendo das condições de crescimento e da fase do ciclo de vida. As vias de acúmulo e mobilização desses dois carboidratos são diferentes. Segundo Panek & Bernardes (1983) o glicogênio e a trealose possuem papéis fisiológicos diferentes em Saccharomyces cerevisiae, sendo o glicogênio um pré-requisito para a esporulação, enquanto que a trealose seria requerida para a germinação e brotamento. A trealose também serve como fonte de carbono e energia em condições de prolongada inanição, como por exemplo, em paradas do processo fermentativo industrial. A trealose é considerada um protetor da membrana celular durante a dessecação da levedura e pode ser um termoprotetor durante fermentações com a elevação da temperatura, por exemplo de 30 para 35oC. Também é dada à trealose a função de crioproteção para as leveduras submetidas ao congelamento. Todas estas funções da trealose estão correlacionadas com a manutenção da viabilidade da levedura. A função de termoproteção atribuída à trealose é obtida pela ação de estabilizadora de proteínas (De Virgilio et al., 1994; Ling et al., 1995). Na figura 3 o esquema mostra a estabilidade da membrana plasmática com a presença de moléculas de trealose, que evitam a formação de poros na membrana, aumentando a tolerância da levedura à desidratação.

Figura 3. Esquema representando a membrana plasmática da levedura – camada de fosfolipídios -, quando hidratada e desidratada.

Quando as leveduras são cultivadas em meios desprovidos de nutrientes como o nitrogênio, enxofre ou fósforo, há diminuição da velocidade de crescimento e acúmulo tanto de glicogênio como de trealose. O glicogênio e trealose acumulam-se principalmente na fase final de crescimento da levedura, quando não há mais nitrogênio disponível e ainda há disponibilidade de glicose. E quando a levedura é submetida às fermentações com elevação das temperaturas, como por exemplo de 30, 33 e 35oC o teor de trealose também aumenta.

Basso & Amorim (1988) realizaram um estudo da mobilização e armazenamento dos carboidratos de reserva durante uma fermentação alcoólica com S. cerevisiae e observaram que estes carboidratos foram intensamente degradados durante os primeiros 30 minutos de fermentação, coincidindo com a produção de glicerol e ácidos orgânicos, sendo repostos durante a incubação posterior. No tempo inicial, a quantidade de glicogênio era de 11,8 g/100g de matéria seca e no final, após 8 horas, era de 15,9 g/100g de m.s. e a trealose também aumentou de 6,22 g/100g de m.s. para 9,08 g/100g de matéria seca. No tratamento ácido do fermento utilizando-se um pH de 2,5 e outro de 3,0, Gomes (1988) encontrou maior teor de glicogênio na levedura tratada em pH 2,5, observando que a elevação do pH da suspensão é acompanhada pela redução de glicogênio das células.

Em fermentações endógenas, quando se fermenta os carboidratos de reserva da levedura (glicogênio e trealose), há uma diminuição do teor de carboidratos da célula com produção adicional de etanol. Essa diminuição no teor de carboidratos permite aumento relativo no teor de proteína da levedura. Esse processo de fermentação endógena foi estudado por Amorim & Basso (1991) e o mesmo resultou em uma patente (P.I. 9.102.738) e essa fermentação é uma alternativa para se aumentar o teor proteico da levedura, sendo que este processo ocorre em condições de estresse da levedura, como a elevação da temperatura do meio. Quando o objetivo é a venda de leveduras como fonte de proteína, ingredientes na ração animal, por exemplo, é importante que a mesma possua maior porcentagens de compostos nitrogenados, proteínas e ácidos nucleicos, após a secagem, o que resulta em uma levedura de melhor qualidade. Esse processo ocorre em condições de estresse da levedura, como a elevação da temperatura do meio.

Terminado o processo de fermentação tradicional, o fermento pode produzir mais etanol às custas das reservas de trealose e glicogênio e de outros constituintes celulares. Tal produção pode atingir 128 litros de etanol por tonelada de fermento (massa seca). Simultaneamente com o consumo das reservas do fermento ocorre um incremento no teor de nitrogênio do mesmo de até 32%. Os picos de máxima produção de etanol e de maior teor de nitrogênio no fermento ocorrem concomitantemente, o que se reveste de grande importância prática quando da remoção de fermento do processo para a produção de ração (Basso et al., 1993).

A cinética de degradação do glicogênio e trealose endógenos, da levedura industrial PE-2, segue uma equação de primeira ordem, indicando que, à temperatura de 40oC, a sua velocidade é uma função exclusiva da concentração de carboidratos presentes. Nesta pesquisa também foi possível obter aumentos no teor de proteína com a degradação anaeróbica do glicogênio e trealose endógenos, sob temperaturas de incubação de 38 a 40oC (Paulillo et al, 2003). Quando pretende-se realizar o tratamento térmico da levedura, para que ocorra a fermentação endógena, com a meta de aumentar o teor proteico da levedura e produção de etanol, é necessário fazer o monitoramento da viabilidade celular, pois com células com baixa viabilidade ocorre diminuição da massa de fermento e pouco ou nenhum aumento de proteínas.

Referências

– AMORIM, H.V.; BASSO, L.C.. Processo para aumentar os teores alcoólicos do vinho e proteico da levedura após o término da fermentação. Pedido de patente P.I. 9.102.738, 28 jun. 1991. Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
– BASSO, L.C.; AMORIM, H.V. Mobilização e armazenamento dos carboidratos de reserva durante a fermentação alcoólica. Relatório Anual de Pesquisas em Fermentação Alcoólica, Piracicaba, n.8, p.1-59, 1988.
– BASSO, L.C.; AMORIM, H.V.; BERNARDINO, C.D.. Fermentação da trealose e glicogênio endógenos. Relatório Anual de Pesquisas em Fermentação Alcoólica, Piracicaba, n.13, p. 1-16, 1993.
– De VIRGILIO , C.; HOTTIGER, T.; DOMINGUEZ, J.; BOLLER, T.; WIEMKEN, A.. The role of trahalose synthesis for the acquisition of thermotolerance in yeast I. Genetic evidence that trehalose is a thermoprotectant. European Journal pf Biochemistry, Berlin, v.219, p. 179-86, 1994.
– GOMES, E. Efeito do tratamento ácido da levedura Saccharomyces cerevisiae na fermentação alcoólica. Piracicaba, 1988. 206p. Dissertação (Mestrado) – Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo.
– LING, Z.Y.; MORIMURA, S.; KIDA, K.. Effect of fermentation temperature on relationship between cell viability and trehalose content of Saccharomyces cerevisiae KF-7 in repeated-batch fermentation. Journal of Fermentation and Bioengineering, Amsterdam, v.80, n.2, p. 204-207, 1995.
– PAULILLO, S.C.L.; YOKOYA, F.; BASSO, L.C.. Mobilization of endogenous glycogen and trehalose of industrial yeasts. Brazilian Journal of Microbiology, v.34, n.3, p. 249-254, 2003.
-PANEK, A.D.; BERNARDES, E.J.. Trehalose: Its role germination of Saccharomyces cerevisiae. Current Genetics, Berlin, v.7, p. 393-397, 1983.